quarta-feira, 30 de junho de 2010

Olhar enraizado Superinteressante

Posted by Picasa


A ótica do cérebro: neurônios e eletricidade

Os neurônios truncam as imagens captadas pelo olho. Alguns só enxergam cores. Outros, apenas movimentos ou formas. É espetacular como reúnem essas informações, sem fazer a menor confusão.

por Lúcia Helena de Oliveira

Basta um simples aceno e a mão em movimento assume até centenas de formatos diferentes, numa seqüência que dura segundos. No entanto, não importa o ângulo em que observa a sua palma e nem sequer as curvas traçadas pelos dedos, o expectador sabe o que está vendo — aquilo, sem dúvida, é uma mão e ponto. Tamanha certeza só é possível porque o cérebro consegue, com rapidez maior do que a de um piscar de olhos, extrair formas invariáveis dos objetos, a partir de um fluxo de informações em perpétua transformação. Do mesmo modo, o comprimento das ondas luminosas refletidas pela superfície de uma maçã, por exemplo, se altera conforme a iluminação do ambiente. Mas o sistema nervoso simplifica as coisas e atribui à fruta uma cor constante. “Interpretação é boa parte do que chamamos sensação”, explica o neurologista Charles Gray, do Instituto Salk, nos Estados Unidos, em entrevista a SUPERINTERESSANTE. “Essa capacidade de interpretar imagens só é extremamente eficiente por causa de uma complexa divisão de funções, do ponto de vista do cérebro.” Ou seja, existem neurônios que trabalham em ritmo de dedicação exclusiva à compreensão de cada detalhe daquilo que se está vendo.
Na ótica cerebral, há no mínimo 25 maneiras diferentes de se enxergar o mundo. E o mais espetacular é que todas elas se unem para produzir uma única imagem da realidade. São 25 as áreas no córtex — a superfície cor de chumbo do cérebro — que têm algum envolvimento com a visão. “Há quem desconfie da participação de umas outras cinco” diz Gray, “totalizando algo em torno de trinta regiões com o papel de decodificar, cada uma delas, um aspecto específico da imagem captada pela retina, no fundo do globo ocular”. Assim, existem áreas que interpretam apenas cores e áreas que se encarregam de revelar formas e movimentos. A equipe do cientista se destaca na investigação de como pontos distintos do cérebro cooperam entre si, criando imagens que não aparen-tam, nem um pouco, a separação de tarefas dos neurônios.
Por que será que uma banana parece amarela e uma cereja parece vermelha? A questão, sem importância à primeira vista, mobiliza em torno de 2000 pesquisadores no mundo inteiro. Entre eles, um jovem médico alemão de 32 anos que, mal saiu da faculdade, trocou o consultório pelo laboratório. No Instituto Max-Planck, em Frankfurt, na Alemanha, o neurologista Andreas Engel se concentra em responder como os neurônios fazem para não confundir as bolas, ou melhor, a figura alongada da banana com a circunferência da cereja “Pois, já que a cor e a forma são processadas em cantos diferentes do córtex, se as duas frutas fossem colocadas lado a lado, as células nervosas bem que poderiam cruzar as linhas, criando a visão de uma banana vermelha junto de uma cereja amarela”, raciocina Engel, com o ar maroto de quem acha a imagem divertida. “Mas o fascinante é que os neurônios não costumam errar”, diz ele, com olhos brilhando.
Por isso, os cientistas apostam: as células das áreas visuais do cérebro se comunicam por meio de um código secreto. “É como se os neurônios capazes de perceber o tom vermelho fossem avisados que tal cor corresponde ao mesmo objeto que outro grupo de neurônios interpreta como sendo umaforma redonda”, descreve o médico pesquisador. “E assim, no cérebro, onde todas as visões são produzidas, a cereja acaba tingida de rubro.” Engel e sua equipe acreditam ter decifrado o código dos neurônios. Guardaram o segredo a sete chaves, até o último Encontro da Sociedade Americana de Neurociências, quando 16 000 cientistas de vários países fizeram o balanço das últimas descobertas sobre o funcionamento do cérebro. Durante o evento, a apresentação da tese assinada pelo grupo do famoso instituto alemão causou furor: “Os neurônios, espalhados por diversas áreas, só conseguem relacionar corretamente as informações sobre corforma e movimento de um mesmo objeto qualquer, porque trabalham em um mesmo compasso”, resume Engel.
Como tudo o que ocorre no cérebro — de um pensamento à dor de um pontapé —, a visão também é pura eletricidade. Com equipamentos de alta precisão, os pesquisadores alemães gravaram os sinais elétricos disparados pelos neurônios de gatos. “As mensagens nervosas relacionadas à visão têm um ritmo próprio”, explica o físico Peter König, que participou da experiência. “Em geral, os neurônios ligados a esse sentido descarregam eletricidade em intervalos de 15 a 30 milésimos de segundo. Ou seja, geram ondas elétricas que podem oscilar entre 30 e 70 vezes por segundo.” Para o pesquisador, são essas oscilações que fazem toda a diferença de objetos diferentes. Enquanto o gato olhava para determinada figura, o exame apontava um padrão de onda idêntico em todas as áreas especializadas que entraram em ação; por sua vez, diante de duas figuras, surgiam dois padrões ou desenhos de ondas. “O cérebro deve relacionar ondas iguais como sendo pertinentes a um mesmo objeto”, especula o físico. “Se isso não acontecesse, numa visita a um museu, as pessoas poderiam enxergar as estátuas caminhando e os turistas estáticos”, exemplifica.
Alguns cientistas não se deram por satisfeitos com a teoria de König e Engel — embora não tenha sido descartada, ela precisa enfrentar uma batelada de testes, inclusive usando outros modelos animais, como macacos. De qualquer modo, tentativas como essa de compreender a rede de transmissão cerebral vêm tornando o estudo da visão um dos campos mais efervescentes das chamadas Neurociências, hoje em dia.
O mapa moderno do chamado córtex visual, dividido em diversas áreas relativamente distantes entre si, surgiu há apenas duas décadas. Até então, prevalecia a imagem criada pelos primeiros neurologistas que pesquisaram sobre esse tema, no século passado. Eles tinham uma visão bastante diferente da atual: acreditavam que a luz refletida pelos objetos impressionava a retinados olhos, como se esta fosse um filme fotográfico. Ali, essa impressão era transformada em sinais nervosos, disparados para uma região da superfície cerebral, próxima da nuca, encarregada de revelar a imagem gravada naretina. Portanto, numa leitura simples, ponto por ponto. Antes de alcançarem essa área nobre, porém, os sinais enviados pelos olhos faziam escala numa estrutura arredondada, abaixo do córtex — o núcleo geniculado lateral.
A concepção desse caminho está correta; o problema é que representa apenas parte da trajetória das informações visuais pelo cérebro. Aquela região na parte de trás da cabeça, hoje se sabe, funciona como uma espécie de agência do correio, distribuindo as informações que ali chegam para destinatários diferentes. Essa mudança de concepção resultou até mesmo em uma alteração de nome: a tal região distribuidora, que antes era conhecida por córtex visual, como se fosse rainha absoluta nessa função, passou a ser chamada de córtex visual primário. Pois, além desse, há pelo menos outros quatro territórios sagrados da sensação visual no cérebro.
As evidências de que a visão não tinha um único endereço no sistema nervoso central surgiram no início da década de 70, com experiências usando macacos, realizadas por duas equipes — uma americana, da Universidade de Wisconsin, e outra inglesa, da Universidade de Londres. Os pesquisadores instalaram eletrodos no cérebro dos animais, para monitorar a atividade elétrica de suas células; mais tarde, mostraram-lhes imagens diversas — linhas, quadrados coloridos, pontos que se moviam. Desse modo, descobriram que milésimos de segundo depois do estímulo visual, ou seja, após a apresentação das figuras, os sinais partiam do córtex visual primário (também chamado V1, sendo a letra V de visão), para uma área ao seu redor, logo classificada de V2.
Próxima dessas duas áreas, uma terceira entrava em ação, mas somente quando os cientistas faziam os animais observarem o desenho de formas. No entanto, essa área, batizada de V3, era indiferente às cores. Já outra parte do córtex, a V4, tinha predileção pelo colorido, embora também fosse ligeiramente sensível aos formatos. Finalmente, qualquer movimento era percebido em uma quinta região, a V5. Graças a certos tipos conhecidos de cegueira, os pesquisadores deduziram que, assim como o dos símios, o sistema nervoso do homem também separava cores, movimentos e formas, na hora de interpretar uma imagem. Existem pessoas com lesões cerebrais,que enxergam nitidamente os contornos dos objetos, mas não fazem a menor distinção entre um pálido tom de cinza e um rosa-choque. Sinal de que, nelas, a área danificada do cérebro operava com cores, sem ter nada a ver com os formatos.
Restava saber se, no homem, essas áreas especialistas se situariam na mesma posição em que foram encontradas no cérebro dos macacos. A resposta, afirmativa, só foi possível na última década, com o desenvolvimento da chamada tomografia de emissão de pósitrons. Essa técnica permite visualizar quais áreas cerebrais estão sendo mais irrigadas pelo sangue, quando alguém desempenha uma tarefa qualquer. Supõe-se que o aumento da circulação sanguínea corresponda à demanda de energia, provocada pela atividade dos neurônios. O tomógrafo de pósitrons também revelou que as cinco grandes regiões, de V1 a V5, identificadas no cérebro humano, podem se subdividir, criando as 25 áreas especializadas conhecidas.
Na verdade, essa especialização é muito mais requintada — ela pode chegar ao nível celular, a ponto de existir um único neurônio encarregado de reconhecer a imagem de uma unha do dedão do pé, desconfiam os pesquisadores. E essa idéia não é nada absurda, diante de uma experiência, já considerada clássica, realizada há cerca de dez anos pelo neurologista Charles Gross, professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. O cientista tentava gravar os sinais elétricos emitidos por neurônios isolados, no córtex de um macaco Rhesus, que havia recebido anestesia local. O animal teve de olhar para linhas, sinais luminosos e desenhos geométricos. Seus neurônios, porém, não deram o menor sinal de atividade. Até que, desolado, Gross balançou as mãos — e, detalhe, nesse tipo de experimento, os pesquisadores procuram se manter imóveis, para não atraírem o olhar das cobaias, atrapalhando a análise dos resultados. Espantado, o cientista americano viu que seu gesto de desistência fez os neurônios do macaco dispararem. Prova de que aquelas células nervosas desprezavam estímulos simples, como traços riscados em cartolina, com os quais Gross tinha perdido tempo e a paciência.
Não é à toa que esses neurônios esnobes terminaram apelidados pela comunidade científica de células-avós, por serem acionadas diante de figuras tão complexas e ricas em detalhes como o rosto de uma senhora idosa. Certos estudos indicam que as tais células-avós servem para o reconhecimento rápido e rasteiro de imagens consideradas tremendamente importantes. Há seis meses, por exemplo, encontrou-se em carneiros células-avós especializadas em identificar o perfil de predadores.
A mais recente descoberta no campo de estudos da visão foi realizada pela equipe do neurologista Ichiro Fujita, do Instituto Riken, no Japão. Os pesquisadores, mais uma vez, mostraram figuras diversas a um grupo de macacos, medindo a atividade dos neurônios numa área situada logo acima da altura da orelha esquerda — é ali, acreditam, o grande arquivo da memória visual. Os cientistas notaram que o desenho de um círculo negro com o centro branco, por exemplo, ativou determinadas células nervosas na primeiríssima camada do córtex. Uma figura ligeiramente diferente — a do mesmo círculo negro, dessa vez com uma forma oval no meio — acionou células na camada logo abaixo daquelas primeiras. E assim por dian-te. Logo, conclui-se que océrebro tem uma coleção de imagens, dispostas numa seqüência: a que está gravada em determinado neurônio difere muito pouco da que está guardada na célula imediatamente abaixo ou acima. Embora o córtex, isto é, a camada superficial do cérebro, não tenha mais do que 2 milímetros de espessura, os cientistas estimam que isso é suficiente para armazenar em células sobrepostas — só nessa região atribuída à memória, bem entendido — algo em torno de 1 000 ícones.
Esses ícones seriam como letras de um alfabeto com o qual o cérebro escreve — e assim reconhece — o nome daquilo que está vendo. Por exemplo: numa célula pode estar gravada a imagem de um bigode; em outra, um formato deolho; bastariam esses dois neurônios serem ativados, para certa pessoa reconhecer o rosto do pai. Ou seja, a combinação dos neurônios determina um padrão, graças ao qual uma figura, por mais complexa que seja, acaba sendo reconhecida. De acordo com o neurocientista Rodolfo Llinas, da Universidade de Nova York, esse estudo pode fornecer pistas sobre como funcionam outros tipos de memória, como a auditiva. “Devem existir pontos em comum”, diz ele. “Na verdade, a pesquisa da visão ajuda a esclarecer os mecanismos de outras funções cerebrais mais genéricas, como a atenção ou o aprendizado”. Ele próprio, como contou a SUPERINTERES-SANTE, tem segundas intenções ao investigar esse sentido: “Os neurônios das áreas visuais só conseguem juntar as informações de maneira lógica e organizada quando a pessoa está acordada”, afirma. “Ou seja, com uma melhor compreensão dos mecanismos da visão, teremos avançado no sentido de entender aquele estado cerebral conhecido por consciência. ”

O que chama a atenção
Há pessoas que vivem esbarrando nas portas; só esvaziam um lado do prato repleto de comida; só maquilam ou fazem a barba de uma das faces e, pior, depois disso, diante do espelho, não vêem nada de errado no próprio visual. Essa gente parece enxergar o mundo pela metade. Mas só parece. Seu problema, decorrente de lesões cerebrais, foi descrito no final do século passado: trata-se de uma heminegligência, ou seja, as vítimas negligenciam um dos lados de seu campo de visão — o lado oposto àquele onde está a lesão no sistema nervoso. “Elas enxergam tudo, mas só prestam atenção a um dos lados”, explica o neurocientista Luiz de Gonzaga Gawryszewski, professor da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro. “Se você colocar essa pessoa na frente de uma casa, ela só descreverá o seu lado esquerdo”, exemplifica. “Então, ao se virar de costas para a casa, quando os lados se invertem, descreverá a fachada direita. Sinal de que a tinha visto antes, mas não deu a menor importância.”
Isso prova que, no cérebro, enxergar e prestar atenção envolvem estratégias nervosas diferentes. Mas é por meio da visão que a equipe chefiada por Gawryszewski pretende esclarecer o comportamento do cérebro atento. “A atenção é um estado em que se cria um filtro”, diz a médica Tania Gouvêa Thomaz, que integra o grupo de pesquisadores. “O cérebro seleciona o que lhe interessa e, a partir daí, barra algumas informações, deixando passar outras.” Os cientistas fluminenses desenvolvem experiências, para medir o tempo que uma pessoa leva para reagir diante de um estímulo visual. “É uma maneira de ver a quantas anda a sua atenção”, justifica Tania.
Em um desses experimentos, por exemplo, voluntários ficam diante de uma tela de computador, com os olhos fixos em determinado ponto. Eles devem apertar uma tecla, assim que se acender um sinal luminoso em outro canto. Só que, antes, surge uma seta, indicando a possível direção desse estímulo. A reação chega a ser entre 30 e 40 milisegundos mais rápida, quando a pista está correta. “Quando a dica da seta é falsa, o cérebro tem de realizar três operações”, fala a médica. “Em primeiro lugar se desliga do ponto em que se concentrava; depois movimenta a atenção para onde ocorreu de fato o sinal luminoso e, então, encaixa o foco nesse ponto. Não é à toa que demore tanto, porque esses milisegundos, para nós, são uma enorme diferença.”

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