domingo, 24 de abril de 2011

Dicionário Filosófico de Voltaire


DESTINO

De todos os livros que até nós chegaram, o mais antigo é Homero. É em Homero que se nos deparam os costumes da antigüidade profana, os heróis e deuses toscamente talhados à imagem do homem. Em Homero também encontramos os embriões da filosofia e sobretudo a idéia do destino, que é senhor dos deuses como são os deuses senhores dos homens.

Debalde quer Júpiter salvar Heitor. Consulta os destinos, pesando numa balança os destinos de Heitor e Aquiles: diz a sorte que o troiano será irrevogavelmente morto pelo grego, e nada pode opor-lhe o soberano dos deuses. Apolo, o gênio guardião de Heitor, é então obrigado a abandoná-lo (26). Não que Homero não seja pródigo de idéias opostas, consoante o privilégio da antigüidade. Mas enfim é o primeiro em que aparece a noção do destino. Devia estar, pois, muito em voga em seu tempo.

Os fariseus, na pequena nação judaica, só conceberam o destino muitos séculos depois, porquanto, embora tenham sido os primeiros judeus letrados, eram muito novos em relação aos gregos. Mesclaram em Alexandria parte dos dogmas dos estóicos às antigas idéias judaicas. Chega a pretender S. Jerônimo não ser sua seita muito anterior à nossa era. Os filósofos sempre prescindiram de Homero e dos fariseus para se persuadirem de que tudo está sujeito a leis imutáveis, tudo está determinado, tudo é efeito necessário.

Ou o mundo subsiste pela própria natureza, pelas leis físicas, ou formou-o um Ser Supremo conforme supremas leis. Num caso como noutro as leis são imutáveis e tudo é necessário. Os corpos graves tendem para o centro da terra, não podendo tender a repousar no ar. Pereiras nunca poderiam dar ananases. O instinto de um espanhol não pode ser o instinto de um austríaco Tudo se acha ordenado, engranzado e limitado.

Não pode o homem ter mais que certo número de dentes, cabelos e idéias. Tempo vem em que inevitavelmente perde os dentes, os cabelos e as idéias

Contraditório seria que ontem não fosse ontem e hoje não fosse hoje. Tão contraditório como se o que há de ser pudesse deixar de sê-lo.

Se pudesses torcer o destino de uma mosca, nada te impediria de traçar o destino de todas as outras moscas, de todos os outros animais, de todos os homens, de toda a natureza. Enfim, serias mais poderoso que Deus.

Dizem os cretinos: O médico arrancou minha tia aos braços da morte, fê-la viver dez anos mais do que deveria viver. Outra modalidade de imbecis – os capazes, – sentenciam: O homem prudente forja o próprio destino.

Nullum numen abest, si sit prudentia, sed te

nos facimus, fortuna, deam, coeloque locamus.

Asseveram profundos políticos que se oito dias antes que se decapitasse Carlos I se tivessem assassinado Cromwell, Ludlow, Ireton e uma dúzia de outros parlamentares, esse rei ainda podia ter vivido e morrer no leito. Têm razão. E poderiam acrescentar que se o mar houvesse tragado toda a Inglaterra esse monarca não teria morrido em um patíbulo junto a Whitehall, ou sala, branca. Porém as coisas estavam dispostas de maneira que Carlos teria irrevogavelmente o pescoço cortado.

Não resta dúvida que o cardeal de Ossat era mais prudente que um louco das Petites-Maisons. Mas não é evidente que os órgãos do sábio de Ossat não eram os mesmos que os de um desmiolado, da mesma forma como os de uma raposa diferem dos de um grou ou uma calhandra.

O médico salvou tua tia. Mas não contradisse a natureza: obedeceu-lhe. Claro que tua tia não podia deixar de nascer senão na cidade em que nasceu, em ocasião certa ter certa moléstia, que o médico não podia estar alhures senão na cidade em que estava, que tua tia forçosamente o chamaria a ele, o qual necessariamente lhe prescreveria os remédios que a curaram.

Crê um camponês haver geado em seu campo por acaso. Mas um filósofo sabe que não existe acaso e que era impossível, na constituição deste mundo, que precisamente naquele dia não geasse precisamente naquele lugar.

Há pessoas que, aterrorizadas ante essa verdade, só concordam pela metade, como devedores que oferecem metade aos credores e pedem mora para a outra metade. Existem, dizem elas, acontecimentos necessários e acontecimentos não necessários. Engraçado um mundo metade em ordem metade em desordem. Que parte do que acontece precisava acontecer, outra não. Basta chegar-se-lhe um pouco mais o nariz para ver ser absurda semelhante teoria. Mas há muitos indivíduos que nasceram para raciocinar mal, outros para não raciocinar .e outros para perseguir os que raciocinam.

Perguntareis:

— E a liberdade?

Não vos entendo. Não sei o que seja essa liberdade de que falais. Há tanto tempo discutis acerca de sua natureza que seguramente não a conheceis. Se quiserdes, ou melhor, se puderdes examinar calmamente comigo o que se deve entender por essa palavra, saltai à letra L.

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